segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Precisão

~ I ~

Desfiar o que me é familiar: minha carne.
Com sangue olhar o sangue
enquanto desfaço os fios
dos músculos
das fibras
da força.

                Pinçar o nervo da vontade:
                                                          arrancar pela raiz
o que me impele
                                  ao nada.


~ II ~

Abrir minuciosamente a carne.
Afastar as margens de pele, estancar o visco.
                             Perfurar a tenra resistência, 
                                                Desativar gestos e espantos,
                                                Amputar flagelos

Golpear a pedra ígnea:
coração.


~ III ~

Cavar, até onde não seja mais
- carne, sangue, osso -
Cavar e alcançar o neutro.

Arquitetura





Os espaços - vazios, brancos, latejantes

                       expandindo-se

em pupilas

               bocas

                       poros

                                 estupefacto corpo.




terça-feira, 7 de maio de 2013

O Rio Oculto



~ I ~


Um dia - uma tarde - flagrei distraída a curva de um rio. Antes disso eu passeara pelo entorno - e era casa, café na varanda e chão de terra batida, e era terra arada, revolvida e aberta, e eram ferramentas abandonadas, era fruto maduro pendurado no galho, pássaros - o entorno formava a massa viva que adiava o encontro entre mim e o rio.

E o rio, o rio oculto.

Penetrei no bambuzal viçoso e ainda não era o rio: era antes um raio de sol, e meu olhar seguiu a luz. O céu era o verde das copas, a seta de luz era quase translúcida, frágil mas concisa, enfática: apontava-me, e ao rio. Meus olhos deslizaram.

Ele era ao mesmo tempo miúdo e vasto. Seu corpo era espesso, pardo, as águas corriam oblíquas, furtivas, discretas. Água mansa, o rio bicho. Rio fêmea. Ele estava ali sob os meus olhos mas também era longínquo e não elaborável.

Parecia que dele eu só poderia apreender o hálito - e isso já seria tanto!

O rio propagava-se até mim diretamente; entre nossos corpos não havia molécula alguma, e na minha boca eu sentia seu gosto de sangue, no meu corpo fluía sua água antiga de ervas maceradas, e sorvíamo-nos no âmago da massa viva, imóveis.


No outro dia -
e era "dia"
era "sábado"
era "sol"
- e nunca seria o rio.




~ II ~


O dia chamou e vai sendo construído


tijolo (pardais, latidos, rosa estampada na xícara)
sobre tijolo (motores, buzinas, vozes, engrenagens funcionando)
sobre tijolo (embalagens, rótulos, códigos de barra, inscrições engastadas nos talheres)
...


O que mantém o muro ensolarado ereto é a argamassa:

um rio que se move entre bambuzais.





~ III ~

 

Lá no íntimo das águas, origem dos pântanos que elaboram a hulha do mundo, lá eu desfiz minhas ruas asfaltadas.

Ruíram arquiteturas suntuosas. Estratificações passaram de camadas definidas a plasma viscoso.

No ar, poeira - minerais pulverizados, expulsos de sua estabilidade anterior.

De volta, agora caminho sobre entulhos: ruas atapetadas por seixos

transplantados do rio.





segunda-feira, 6 de maio de 2013

Primeiro Início



Foi num tropeço que vi o pedaço da borda de barro (o restante estava enterrado). Depois soprei dentro da ânfora num impulso e esse foi o meu gesto mais puro: recebi o som esquecido de sopro antigo. Não é hálito de pirâmides - a ânfora soprada é livre mas guarda toda a substância que me constitui: grãos, sementes, minérios - latências de um tempo isento de maturação.

A ânfora é o não-eu. Um espaço, um risco de luz. Não é a minha redenção porque é antes disso. As coisas paradas existindo sem pulso, sem olhos: existência um instante antes da centelha.

Através da ânfora respiro o mundo pétala a pétala desdobrando-se para o espaço (e não para um eu). O espaço é a matéria primordial e é o âmago de minha ânfora.

A mim me basta a ânfora para que eu seja e o lugar desnudo, sem a obrigação de um passo que talvez desestabilizasse a imobilidade da qual preciso: raiz.

Arrisco: ânfora – e sou autóctone. Fecho os olhos: ânfora – eu poliqueto marinho; ânfora – mundo recém lavado por chuva e imediatamente flagrado pelo sol.

Ânfora: destilo-me: partícula suspensa numa claridade de templo.



domingo, 5 de maio de 2013

Trabalho



A luz, o trabalho do homem e as avencas na varanda nascem do buraco aberto no asfalto pela britadeira. As avencas recolhem-se ao recato de sombras bordadas na varanda, e o dia ecoa calcando (sem sombra) nos muros, calçadas, azerves.

Do meio do asfalto o dia fendido ao meio reverbera. Da fenda no asfalto nasce o homem.

E o corpo do homem recebe em sacolejos

                                                                  a fenda difícil do asfalto.


sábado, 4 de maio de 2013

Gênese



Brota de uma fenda e de imediato está a entrelaçar com sua dança imóvel o espaço sêmen ao redor.

Canta pra dentro de si a intimidade marinha, séstons.

Com a face convexa esquadrinha rendas de sol, coágulos de sal, água tamborilando sobre o próprio peso.

E trabalha, e masca, e molda às escuras no côncavo o seu fruto com o mundo: 

pérola.