~ I ~
Um dia - uma tarde - flagrei distraída a curva de um rio.
Antes disso eu passeara pelo entorno - e era casa, café na varanda e chão de
terra batida, e era terra arada, revolvida e aberta, e eram ferramentas
abandonadas, era fruto maduro pendurado no galho, pássaros - o entorno formava
a massa viva que adiava o encontro entre mim e o rio.
E o rio, o rio oculto.
Penetrei no bambuzal viçoso e ainda não era o rio: era antes
um raio de sol, e meu olhar seguiu a luz. O céu era o verde das copas, a seta
de luz era quase translúcida, frágil mas concisa, enfática: apontava-me, e ao
rio. Meus olhos deslizaram.
Ele era ao mesmo tempo miúdo e vasto. Seu corpo era espesso,
pardo, as águas corriam oblíquas, furtivas, discretas. Água mansa, o rio
bicho. Rio fêmea. Ele estava ali sob os meus olhos mas também era longínquo e não elaborável.
Parecia que dele eu só poderia apreender o hálito - e isso
já seria tanto!
O rio propagava-se até mim diretamente; entre nossos corpos
não havia molécula alguma, e na minha boca eu sentia seu gosto de sangue, no
meu corpo fluía sua água antiga de ervas maceradas, e sorvíamo-nos no âmago da
massa viva, imóveis.
No outro dia -
e era "dia"
era "sábado"
era "sol"
- e nunca seria o rio.
~ II ~
O dia chamou e vai sendo construído
tijolo (pardais, latidos, rosa estampada na xícara)
sobre tijolo (motores, buzinas, vozes, engrenagens funcionando)
sobre tijolo (embalagens, rótulos, códigos de barra,
inscrições engastadas nos talheres)
...
O que mantém o muro ensolarado ereto é a argamassa:
um rio que se move entre bambuzais.
~ III ~
Lá no íntimo das águas, origem dos pântanos que elaboram a
hulha do mundo, lá eu desfiz minhas ruas asfaltadas.
Ruíram arquiteturas suntuosas. Estratificações passaram de
camadas definidas a plasma viscoso.
No ar, poeira - minerais pulverizados, expulsos de sua
estabilidade anterior.
De volta, agora caminho sobre entulhos: ruas atapetadas por
seixos
transplantados do rio.